domingo, 14 de outubro de 2012

Amada amiga




Por ser um contínuo viajante, não me conecto aos lugares de forma convencional. Cada localidade por onde passei é como um velho amigo, com sentimentos e histórias que compartilhamos e que, quando nos sentamos juntos, lembramos com risadas.

Lugares são, em minha mente, mais que simples lugares, adquirindo uma conotação especial. E poucos lugares são tão especiais para mim quanto meu velho amigo Guaraú.

Guaraú é uma praia incrustada no meio da mata da Juréia. Sua relação comigo era quase de amantes. O guaraú era como uma linda mulher que se escondia misteriosa por trás das curvas sinuosas de uma estrada estreita chamada vida. Guaraú me ensinou o que é solidão e o que é alegria. Compartilhou comigo momentos de felicidade (pescarias, descobertas) e a desilusão da perda (a morte do meu avô). Guaraú me fez descobrir mais sobre mim do que a grande maioria das pessoas que passaram pela minha vida.

Sinto falta das areias macias de suas ruas esculpidas no meio do matagal. As casas esparsas ao longo da Rua do Telégrafo, por onde andava de bicicleta. Guaraú, velha amiga, amante de águas salgadas, sinto saudades de você.

Porém, minha amada morreu. As coisas não são como nos lembramos dela. O grande problema da realidade é que ela vem para esmagar nossos sonhos e nossas lembranças e nos traz amargura à boca.

As ruas de areia branca foram substituídas por asfalto, e os rios que éramos obrigados a atravessar de carro foram cobertos por pontes, como se fossem um sangramento a ser estancado. Eram lágrimas de quem sabia o que a esperava. De quem sabia que ia morrer.

A docilidade da noite escura de lua grande que invadia a praia foi trocada por holofotes amarelos ao longo da orla. O romantismo acabou, minha amante se foi, já não existe mais.

Porém, ficou a lembrança de quem éramos juntos em minhas brincadeiras infantis e meus primeiros arroubos juvenis ainda me dá calafrios de quando se vê a primeira namorada. O primeiro amor é sempre duradouro e perene, mesmo que o objeto amado tenha morrido.

Foi triste o destino de minha amada Guaraú. Minha velha amiga se foi. Quando olho para trás e vejo o que passamos, sinto, mais do que saudades, a certeza de que vivemos muito, compartilhamos muito, dividimos muito. Em suas areias sentava-me para ver o mar e acompanhar o desenho que a lua fazia em suas águas. Conversava com ela e esperava respostas. Em Guaraú eu ouvi minha mente perguntar o porque de tudo pela primeira vez.

Amigos fazem-nos questionar nossos princípios, sem nos censurar por termos feito as escolhas que fizemos. Discordam de nós, mas respeitam nossas escolhas. Nunca duvidam de nossa capacidade. Sempre questionam nossos limites e sempre aceitam que façamos o mesmo.

Tive muitos relacionamentos parecidos com amizades em minha vida, mas sempre faltava algo. Eu sempre me senti invadido, mas nunca consegui que permitissem minha invasão. Isso foi fazendo com que me fechasse e duvidasse mais do ser humano a cada dia.

Meu relacionamento com os verdadeiros amigos tinham que ser como meu relacionamento com Guaraú: sem segredos, sem limites, sem barreiras. Quando estava lá, entregava-me totalmente a ela e vice versa, de forma transparente, completa, incondicional.

Porém, humanos não são praias (e nem ilhas) e não são tão abertos assim às águas que vêm a eles. Mais parecidos com rios sinuosos, onde cada curva guarda uma surpresa, os mistérios do ser humano não são tão prazerosos de se descobrir quanto os mistérios de uma praia insondável. Diferente das praias, que escondem o seu melhor, não o revelando no primeiro encontro, mas nos encontros mais furtivos e íntimos, nós, humanos, revelamos o nosso melhor e escondemos o nosso pior, que vamos revelando com o tempo. A praia não exige confiança para se abrir para nós. Ela se revela e nos surpreende a cada passo. O ser humano nos conta seus segredos de forma triste e vaga, escondendo seus verdadeiros sentimentos.

Não somos feitos de areia e mar, mas de carne e sangue, e isto faz diferença. Ainda conhecerei outras praias, mas não acredito que tenha uma ligação tão forte com nenhuma delas, assim como não acredito que possa permitir uma ligação tão forte com outras pessoas também.

Originalmente publicado no "Lar Interior"