terça-feira, 29 de maio de 2012

Ópera Kitsch no horário nobre


Por meio da reflexão chegamos a conclusões sobre nós mesmos. Passamos a entender nossos erros e nossos acertos. Entendemos nossa história. A reflexão sobre os papéis que ocupamos ao longo de nossas vidas é fundamental para que alcancemos o estado de graça necessário para o crescimento pessoal.

Isso não acontece apenas com pessoas. As instituições também precisam passar pelo processo de reflexão e reinvenção de si mesmas. O dinamismo das transformações do século XXI força-as ainda mais do que as pessoas, pois, usadas como exemplos hoje, podem cair em desuso amanhã. As instituições sofrem mais que as pessoas com os tempos em que vivemos.

Uma das instituições que mais sofreu com o novo século foi a novela. Outrora, o grande trunfo da TV brasileira, que movia as massas para a frente dos aparelhos todas as noites para acompanhar a vida de heróis e vilões, para desejar a riqueza de uns e se consternar com a pobreza dos outros, passou por maus bocados neste início de novo século. Encontrar uma voz para ser ecoada no meio da cacofonia comunicacional dos dias de hoje não foi fácil e aquela que era a vedete da TV brasileira teve que se contentar com um lugar sorrateiro no coração das suas mais fiéis telespectadoras: As donas de casa.

Porém, como disse no início deste texto, as instituições precisam refletir sobre qual seu papel no seio da sociedade em que estão representadas. Nos tempos de outrora, heroínas puras como a Escrava Isaura faziam sentido. No entanto, hoje, a pureza e a castidade não são mais requisitos tão valorizados. A independência da mulher chegou, e com ela, diversos novos valores e diversas interpretações de valores antigos que deixam de fazer sentido em uma nova sociedade.

Claro que a dona de casa ainda se alimenta daquele sonho lindo de ver a heroína castiça casando de vestido branco, véu e grinalda na igreja, com Mário Lago como padre (nos anos 80 e 90 só ele fazia padres na TV, era coisa de louco!) celebrante. Porém, as donas de casa não mandam mais no controle remoto. Suas filhas e, pasmem, seus filhos, tomaram as rédeas do mundo televisivo, e entre uma série americana e um documentário sobre o comportamento dos pescadores de focas do Alasca, eles podem querer ver algo que represente um pouco de sua realidade.

É aí que entra a nova novela brasileira.

E seu maior exemplo é a atual trama das 21h: Avenida Brasil, com seus personagens tirados do cotidiano brasileiro.

João Emanuel Carneiro com as estrelas de sua trama: O segredo é representar sentimentos reais para pessoas reais


O autor, João Emanuel Carneiro, é o criador da maior vilã de novelas do século XXI: Flora, de A Favorita, primeira experiência de exploração da vilania como expurgo para os sentimentos contidos no coração dos telespectadores. Na trama atual, ele apresenta a nova classe "C", e seus desafios. Além de criar uma vilã à altura de Flora: Carminha.

Na trama atual, acompanhamos Nina em uma luta por vingança. Carneiro explora sentimentos contidos no coração de cada um de nós, mas que temos medo de expressar. Raiva, dor, angústia, tristeza, vingança. Em explorar estes sentimentos, Carneiro tem o grande trunfo do novo século: a busca pelo realismo.

Somos humanos, dotados de emoções e sentimentos contraditórios. Tomamos decisões de mudança para, em seguida, continuar cometendo os mesmos erros. Falamos coisas para, no mesmo segundo, nos arrependermos. Pensamos coisas sujas, desejamos o mal, ansiamos pela derrota alheia como forma de purgar as nossas próprias. Somos vingativos.

Por outro lado, torcemos pelo outro. Queremos ve-lo tendo sucesso e alegria. Nos dedicamos, buscamos ser melhores, caímos e nos levantamos, enxergamos nossos erros e buscamos muda-los. Insistimos, amamos, nos ferimos, mas amamos de novo mesmo assim, para nos ferirmos mais uma vez. Desejamos, lutamos para conseguir, somos cheios de esperança.

João Emanuel Carneiro sabe explorar todas estas facetas em seus personagens. Como Manoel Carlos o faz tão bem com as classes mais altas, Carneiro o faz com as classes baixas. Ele mostra, em sua novela, ambientes em que podemos nos inserir. Nos apresenta personagens que já conhecemos. Olhamos para sua novela para nos vermos refletidos nos sonhos de um jovem jogador de futebol que quer crescer, ou vemos nossa vizinha representada pela periguete que quer encontrar a estabilidade. Queremos mais de suas novelas porque nos vemos nelas.

E tudo isso com um agravante: A novela assumindo-se como ela é: Kitsch, brega, cafona. Ironicamente, de dentro desta cafonice surge nossa humanidade brasileira. Das correntes de prata, dos cortes de cabelo de pagodeiro, das chapinhas e dos cordões de bijuteria, vemo-nos representados às 21h quando surge Tufão e sua turma e os sonhos que aspiramos para nós.

A Ópera de nossas vidas se representa na novela de João Emanuel Carneiro. Kitsch, sem perder o orgulho próprio.

Talento

Li uma crítica ontem sobre os textos de um escritor argentino. Gosto dos argentinos. São excelentes contistas. Desde Borges esta escola se dissemina entre nossos Hermanos.


No meio da crítica, uma frase interessante: "Com o livro nas mãos, eu fiz o que os escritores fazem quando se lembram de seus livros favoritos: olhei para o chão, senti uma dor terrível no peito que descia ao estômago e comecei a me deprimir e a me entregar ao abatimento porque o maldito Fogwill escreveu esses contos e não eu. Porca miséria."

Imagino que os arquitetos, os pintores, os atores, os autores de novelas, os compositores, todos os que lidam com a arte tenham este mesmo sentimento de inveja diante de uma obra prima. Aquilo que nos diminui, mas nos fortalece. Aquilo que confirma o talento do artista e conforma a falta de talento do arteiro.

O ofício de escritor é baseado no exercício prático de contar histórias. Como contadores de histórias, nossa meta é prender a atenção daquele que nos lê. Temos a pretensão de, assim, sermos o centro das atenções de um mundo que já não dá atenção a ninguém por mais de quinze segundos. Andy Warhol estava mais certo do que imaginava...

Escritores são anacrônicos. Somos mais que frases soltas no Facebook e muito mais que cento e quarenta toques no Twitter. No entanto, a simplificação de nossa excelência por meio da seleção de trechos curtos que podem caber no espaço de um suspiro e ser lidos no tempo de uma risada acaba por macular aquilo que temos de mais precioso.

Nosso talento.

Testemunhar a perfeição nos faz querer alcança-la por nós mesmos. Ler Borges, Stendhal, até o chato Hemingway, Proust, Lispector ou Melville, como estou fazendo, é nos diminuir e, ao mesmo tempo, nos fazer crescer. Vendo sua perfeição, elegância e eloquência, podemos nos inspirar.

A reprodução parcial destes textos, recortados e picotados para caberem no compartilhamento do Facebook não é aprazível para a própria arte. Alguns, que pensam que divulgam o trabalho do escritor fazendo isso, enganam-se. Não divulgam o trabalho do escritor. Ao contrário, deturpam-no.

O talento não pode ser concentrado em pílulas, mas consumido em largas doses. Seja em curtos contos, seja em longos romances.