domingo, 14 de outubro de 2012

Amada amiga




Por ser um contínuo viajante, não me conecto aos lugares de forma convencional. Cada localidade por onde passei é como um velho amigo, com sentimentos e histórias que compartilhamos e que, quando nos sentamos juntos, lembramos com risadas.

Lugares são, em minha mente, mais que simples lugares, adquirindo uma conotação especial. E poucos lugares são tão especiais para mim quanto meu velho amigo Guaraú.

Guaraú é uma praia incrustada no meio da mata da Juréia. Sua relação comigo era quase de amantes. O guaraú era como uma linda mulher que se escondia misteriosa por trás das curvas sinuosas de uma estrada estreita chamada vida. Guaraú me ensinou o que é solidão e o que é alegria. Compartilhou comigo momentos de felicidade (pescarias, descobertas) e a desilusão da perda (a morte do meu avô). Guaraú me fez descobrir mais sobre mim do que a grande maioria das pessoas que passaram pela minha vida.

Sinto falta das areias macias de suas ruas esculpidas no meio do matagal. As casas esparsas ao longo da Rua do Telégrafo, por onde andava de bicicleta. Guaraú, velha amiga, amante de águas salgadas, sinto saudades de você.

Porém, minha amada morreu. As coisas não são como nos lembramos dela. O grande problema da realidade é que ela vem para esmagar nossos sonhos e nossas lembranças e nos traz amargura à boca.

As ruas de areia branca foram substituídas por asfalto, e os rios que éramos obrigados a atravessar de carro foram cobertos por pontes, como se fossem um sangramento a ser estancado. Eram lágrimas de quem sabia o que a esperava. De quem sabia que ia morrer.

A docilidade da noite escura de lua grande que invadia a praia foi trocada por holofotes amarelos ao longo da orla. O romantismo acabou, minha amante se foi, já não existe mais.

Porém, ficou a lembrança de quem éramos juntos em minhas brincadeiras infantis e meus primeiros arroubos juvenis ainda me dá calafrios de quando se vê a primeira namorada. O primeiro amor é sempre duradouro e perene, mesmo que o objeto amado tenha morrido.

Foi triste o destino de minha amada Guaraú. Minha velha amiga se foi. Quando olho para trás e vejo o que passamos, sinto, mais do que saudades, a certeza de que vivemos muito, compartilhamos muito, dividimos muito. Em suas areias sentava-me para ver o mar e acompanhar o desenho que a lua fazia em suas águas. Conversava com ela e esperava respostas. Em Guaraú eu ouvi minha mente perguntar o porque de tudo pela primeira vez.

Amigos fazem-nos questionar nossos princípios, sem nos censurar por termos feito as escolhas que fizemos. Discordam de nós, mas respeitam nossas escolhas. Nunca duvidam de nossa capacidade. Sempre questionam nossos limites e sempre aceitam que façamos o mesmo.

Tive muitos relacionamentos parecidos com amizades em minha vida, mas sempre faltava algo. Eu sempre me senti invadido, mas nunca consegui que permitissem minha invasão. Isso foi fazendo com que me fechasse e duvidasse mais do ser humano a cada dia.

Meu relacionamento com os verdadeiros amigos tinham que ser como meu relacionamento com Guaraú: sem segredos, sem limites, sem barreiras. Quando estava lá, entregava-me totalmente a ela e vice versa, de forma transparente, completa, incondicional.

Porém, humanos não são praias (e nem ilhas) e não são tão abertos assim às águas que vêm a eles. Mais parecidos com rios sinuosos, onde cada curva guarda uma surpresa, os mistérios do ser humano não são tão prazerosos de se descobrir quanto os mistérios de uma praia insondável. Diferente das praias, que escondem o seu melhor, não o revelando no primeiro encontro, mas nos encontros mais furtivos e íntimos, nós, humanos, revelamos o nosso melhor e escondemos o nosso pior, que vamos revelando com o tempo. A praia não exige confiança para se abrir para nós. Ela se revela e nos surpreende a cada passo. O ser humano nos conta seus segredos de forma triste e vaga, escondendo seus verdadeiros sentimentos.

Não somos feitos de areia e mar, mas de carne e sangue, e isto faz diferença. Ainda conhecerei outras praias, mas não acredito que tenha uma ligação tão forte com nenhuma delas, assim como não acredito que possa permitir uma ligação tão forte com outras pessoas também.

Originalmente publicado no "Lar Interior"

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Saudade

Eu sinto falta.

Sinto falta do jeito dele de pular no portão verde de metal quando me ouvia chegando e de como me irritava o seu choro lânguido e comprido enquanto eu andava pelo corredor até ve-lo.

Sinto falta dos seus pelos amarelados e ruços, eriçados, ressecados e das suas orelhas caídas e seu jeito de Banzé covarde e sem graça.

Sinto falta das suas costelas aparecendo mesmo com ele comendo feito uma draga, uma praga que só comia carne de primeira (o resto ficava tudo no pratinho, quando não era espalhado pela área da frente de casa!).

Sinto falta de como ele se embrenhava na sala e enfiava a cabeça por baixo da minha mão em busca de um pouco de carinho e atenção.

Sinto falta de pega-lo mijando na parede de casa, sempre no mesmo lugar, a esquininha do quintal, e ralhar com ele, e ele vir na minha direção com aquela cara de pidão, rabo entre as pernas, cabeça baixa, olhos tristes, pedindo desculpas, mas sem prometer que nunca mais faria, pois no dia seguinte estaria lá, no mesmo local, fazendo a mesma coisa.

Sinto falta de soltar a corrente da coleira e ve-lo, em desabalada carreira, atravessando ruas como um torpedo. Mais de uma vez pensei que fosse perde-lo para um carro, ou, pior, um cão maior. Baixinho encrenqueiro que era, não levava desaforo para casa...

Sinto falta do seu jeito carinhoso, do seu olhar atencioso, das suas lambidas calorosas, da sua falta de tato, esbaforido que é.

Sinto falta do meu cachorro pulguento, sujo e xexelento. Sinto falta do meu Totó, e não tem cachorro no mundo que consiga substitui-lo.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Amor e ódio




"Como a gente pode amar e odiar uma mesma pessoa?", pergunta-me uma amiga. Uma pergunta que surge de um lugar que nem imagino, mas busco a resposta em mim e na minha própria vida.

O ódio é uma faceta oculta do amor. Não queremos admitir jamais que o sentimos, pois falar sobre isso é dizer que somos seres humanos inferiores. No lindo mundo da imaginação do Facebook, onde todos são cores do arco-ir
is e a felicidade até que existe, onde todos amam cachorrinhos e postam fotos com suas famílias felizes e escondem os problemas de seus relacionamentos atrás de instantâneos de sorrisos que, na verdade, nada mais são do que hipocrisia, o ódio não tem lugar. Abrimos mão de demonstrar nossa humanidade em troca de ser aceitos por todos à nossa volta.

Mas nós odiamos. E odiamos muito. Especialmente quando somos feridos pelas pessoas.

E as feridas que nos afligem são sempre surpresas. Somos feridos por aqueles que amamos, aqueles de quem esperamos carinho, amor, afeto, atenção, amizade, respeito, aqueles que nos despertam admiração, orgulho, aqueles que nos trazem felicidade. Aqueles de quem não esperamos nada, quando algo ruim vem, não nos surpreendem. Ferem, mas a gente se levanta e segue.

O ódio vem do amor que sentíamos por alguém que nos fere. Sentimos que depositamos nossos sentimentos em algo que não vale a pena. É como colocar dinheiro em um banco e este banco nos passar a perna, deixando-nos com uma baita dívida ao invés dos dividendos.

Muitas vezes a gente espera das pessoas que cercam a gente um pouco mais do que elas podem nos oferecer. Esperamos que elas sejam conosco o mesmo que somos com elas, e este é o erro. Se amar é um sentimento incondicional, como podemos pensar em exigir de volta o mesmo amor que oferecemos?

Não existe amor perfeito. Se pensássemos que o amor é uma pessoa, ela teria que atender a todas as expectativas de todas as pessoas de todas as formas mais diferentes e imagináveis, e não é assim que acontece. Às vezes a gente se decepciona.

E um dos motivos desta decepção é que depositamos nossas expectativas sobre os ombros de pessoas como nós. Pessoas imperfeitas. Pessoas que, sentem o amor à sua maneira, sob seu ponto de vista, levando em consideração seu próprio background. E muitas vezes, quando a gente ama, a gente prefere fingir que nada disso existe, e aí está um grande erro.

As decepções geram o ódio, que pode ser amainado se a gente permitir. Ódio é como fogo, só cresce se tiver oxigênio. Se você o apagar ele não volta a te incomodar. Não estou dizendo que isto é fácil, mas que este é o caminho, e, como diz um velho ditado, o remédio amargo é o que cura.

Amar e odiar a mesma pessoa só acontece porque a gente espera muito dos outros graças às expectativas que o mundo joga sobre nossas próprias costas. A ansiedade é a doença do século XXI. Queremos tudo rápido, e não é assim que as coisas funcionam no mundo real. A vida real é diferente, e os sentimentos não são tão objetivos quanto os status de relacionamento do Facebook.

Odiar? Normal, apesar de não admitido. Prosseguir odiando? Aí só depende de você.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Decepções

E quando você carrega para casa os problemas alheios e fica preocupado com as pessoas de quem você gosta, mesmo quando não sabe se estas pessoas se importam com você o tanto que você se importa com elas?

Eu não escondo o que eu sinto. Nunca. Sou um péssimo mentiroso, e isso é complicado. Sou indelicado às vezes, mas estou disposto a pagar este preço. Olho em volta e vejo hipocrisia. Não consigo fingir que isso me agrada. Vejo deslealdade, e isso me machuca e decepciona muito.

Nunca deixarei de acreditar no ser humano. O que pode ser compreendido como uma burrice absoluta para mim nada mais é que minha porção de fé na transformação. No entanto, minha fé em pessoas específicas... Essa não tem jeito.

Mas diz o ditado que amar a humanidade é fácil, difícil, é amar o próximo, não é? Então não dá para esperar nada diferente de mim. A única diferença é que eu não sou hipócrita de fingir que gosto de alguém só porque aquilo pode me trazer alguma vantagem ou benefício.

Outra coisa que não faço é tentar passar para trás qualquer pessoa que seja.

Ainda menos com pessoas que acreditaram em mim por algum motivo.

Por isso, quando vejo que estou sendo passado para trás por pessoas em quem depositei minha confiança, o que sinto é uma grandecíssima decepção. Mas não pela pessoa, e sim por mim mesmo.

Mas decepções são positivas. Elas nos ensinam sobre o comportamento humano. Muitas vezes não queremos aprender, mas aprendemos, nem que seja na marra. A dor ensina mais que o prazer, e perder ensina mais do que vencer. Tirar das decepções a lição necessária para levantar e seguir em frente. Eis a condição humana. Vamos nos entristecer uns com os outros o tempo todo, e só vamos nos decepcionar com aquelas pessoas de quem esperávamos algo. Depositar a confiança no outro é um salto no escuro, ao mesmo tempo que um passo de fé.

Queria não me decepcionar, mas sou humano e meus julgamentos sobre as pessoas são baseados no fato de que eu sou imperfeito e posso ser enganado por perfis aparentemente bons, pessoas que se passam por amigos, mas que na realidade não o são.

Vou continuar acreditando. Não é isso que vai me fazer perder a fé no ser humano. Ademais, adoro aventuras. Saltos no escuro podem ser fascinantes. Você não sabe o que esperar do outro lado...

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Batuque paulicéia



Prova de Carinho, de Adoniran Barbosa e Hervê Cordovil, é um exemplo de que a história que Vinícius falava sobre São Paulo ser o túmulo do samba não está com nada. Primeiro que declarar a morte do samba é um exagero. Segundo, por que São Paulo produz um samba rico em criatividade, e, especialmente, com identidade local.

Em Adoniran isso pode ser sentido no vocabulário. Suas músicas cheias de maneirismo reproduzem o falar do paulista de sua região. A cidade de São Paulo com suas fábricas, seus trens e metrô, seu ritmo próprio se reflete em suas letras cotidianas, de realidade contundente. Desde a demolição de um cortiço antigo até a morte de uma moça na esquina mais amada da cidade (logo a São João...), é o respirar da metrópole, com sua voz mais aguda e profunda. É possível sentir o cheiro do molho de tomate no Samba do Arnesto, e mesmo o cheiro de fumaça na Saudosa Maloca. Isso para ficar em algumas das mais famosas composições do Bardo paulistano, que canta sua musa, sua cidade, com sua elegia à loucura, qual Juó Bananére e seu italianato brasileiro deliciosamente errado e, muitas vezes, incompreensível.

Fala da cidade, também, o maior batedor de latinha de graxa de todos os tempos (junto com Ciro Monteiro fariam uma dupla de percussionistas bastante inusitada, uma caixa de fósforos e uma lata de graxa), Germano Mathias. Diferente do samba de Adoniran, a música de Germano é, segundo ele mesmo, um "samba bibopado", com uma cadência própria e uma identidade perene. Seus breques e quebras de ritmo fazem de sua arte um achado de originalidade e criatividade que podem ser comparados ao samba criado por Dicró, Moreira da Silva e Bezerra da Silva. Um Kid Moringueira da Praça da Sé, com sua ginga de artista de rua e a elegância do verdadeiro malandro.

O que dizer, então, de Paulo Vanzolini, o oftalmologista que criou versos como "Um homem de moral não fica no chão, nem quer que mulher lhe venha dar a mão. Reconhece a queda, e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima"? A poesia seca de uma cidade que urge. Ao mesmo tempo, a cadência de "Amor de trapo e farrapo", que faz gosto de ouvir. Oftalmologista, viu na íris da cidade sua poesia mais fugidia, aquela que a própria cidade não identificava tão facilmente. Enxergou na cidade o doce que não se vê com facilidade, apenas com a ajuda de aparelhos.


E é do panteão dos deuses do samba que se invoca o nome dos demônios que melhor expressam cada um destes compositores. Com vozes estridentes e um jeito seu de interpretar cada uma das músicas destes compositores, os Demônios da Garoa, sacrílego grupo de sambistas (paulistas! Sacrilégio!) atacava com seus "Quais" (E não "quaix", como viria de um carioca) e sua sonoridade e elegância. Não como malandros, não com a pele negra, não com samba no pé, mas com samba na voz, nos instrumentos, nos ternos bem cortados, nos cabelos engomadinhos e nos sapatos bem lustrosos. Um samba "almofadinha", assumidamente apressado, indelevelmente paulista, rico, profundo e saboroso, qual sanduíche de mortadela do Mercado Municipal ou pastel de feira da Liberdade.

O mais intrigante da frase de Vinícius sobre o samba paulista é saber que seu maior parceiro, Toquinho, veio da terra da garoa. Mas eu tenho, de certa forma, que concordar com Vinícius... Se São Paulo é o túmulo do Samba isso só acontece porque o samba escolheu ser enterrado ali, onde pode ser sempre lembrado.








quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Encontrando a própria voz

Você tem que encontrar sua própria voz.

Foi o que ela disse enquanto me ouvia cantar uma música de Chico imitando a (horrível) voz dele. É algo que eu faço muito. Mimetizar a voz alheia ao invés de buscar a minha própria para cantar. É um pouco de falta de confiança misturado com um muito de preguiça.

Não é apenas nisso que o mimetismo surgia em mim. Lendo coisas antigas que eu mesmo havia escrito (era mesmo eu ou algum outro que me tomava o corpo e a consciência naquela época?) enxerguei o eco de tantos outros escritos de outros tão melhores que eu. Enxerguei em meus textos de inspiração as palavras de Max Lucado, e em meus contos um muito de Fernando Sabino. Minha poesia ecoava Vinícius, depois Leminski, depois Vinícius novamente. Enquanto escritor eu era um excelente prestidigitador da ideia alheia.

Quando enxerguei isso estava com o "Porto dos Mortos" pelo meio. Parei e fui rele-lo de cabo a rabo, encontrando ecos e ecos em tudo o que eu escrevia. Um trecho eu era Gabo, em outro, Bernard Cornwell, mais à frente, Manel Loureiro.

Ser inspirado por estes escritores é maravilhoso. Tentar conseguir expressar o mesmo espanto que Gabo consegue com o final de Cem anos de solidão é uma meta que escritores precisam buscar. O detalhismo de Cornwell é fantástico, sua fidelidade à história é surpreendente. Porém, não se trata apenas disso, e sim de mimetizar situações, passagens e ações que eles criaram em minha obra.

Mais que ser inspirado, é copia-los de forma indireta. Não pegar trechos deles e transpor para meus escritos, mas escrever como eles, como cada um deles em um trecho da história.

Primeiro que isso tira a unidade do texto. Toda a coesão vai para o espaço quando você começa a escrever como J. R. R. Tolkien e termina como Joyce. É um sinal de uma voz tão fraca que os ecos que reverberam dentro dela acabam soando mais altos que ela própria.

Em busca da minha voz comecei a canetar o texto inteiro. Encontrei Hemingway perdido entre as ruas de Santos e Verne sobrevoando de helicóptero um navio aportado. fui limpando isso tudo, transformando tudo em texto meu, fazendo valer minha própria voz. No começo eram gritos roucos, mas, aos poucos, consegui encontrar o tom e faze-la soar. Os ecos continuam lá, graças a Deus. Não poderia viver sem eles, mas consegui encontrar minha própria forma de contar as coisas.

Não percebemos quando mimetizamos o outro naquilo que fazemos. A experiência alheia nos serve como catapulta para nos levar além, nos fazer crescer, ou apenas serve de cama para deitarmos nossa preguiça? O fato é que aqueles que trilharam o caminho antes de nós têm experiências que podem nos ajudar a trilhar o caminho também, mas é com nossas pernas que precisamos vencer os desafios. É nossa voz que tem que se sobrepujar às vozes das experiências alheias em nossas vidas. Nossas experiências precisam ter importância também para nós.

Parei de imitar o Chico e descobri que minha voz é, modéstia à parte, mais bonita que a dele (mas isso não é esforço nenhum, já que, apesar de grande compositor, Chico é um intérprete menor), e vendo o que escrevo hoje encontro os ecos dos outros ainda reverberando entre as letras, no entanto, é a minha voz que se sobressai, e isto me deixa feliz, e identificado com aquilo que escrevo.











segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Grandes autores, grandes momentos


Poeira de estrelas

Supernova ocorrida há 130  milhões de anos e só vista
agora por nossos olhos. É como olhar para  o passado
e enxergar a própria história do universo acontecendo
ao nosso redor
Somos  todos poeira de estrelas. Acho que Carl Sagan disse isso, e eu tenho que concordar.

No horizonte do nascimento do Universo existe a explosão original, o Big Bang (Deus?) expandindo para todos os lados a matéria da qual seríamos feitos. Carbono, oxigênio, hidrogênio, tudo criado naquele momento inicial e trazido até nós, segundo a máxima de que nada se cria, tudo se transforma.

Temos mais de 140 bilhões de anos de existência. Temos no nascimento do universo nossa gênese absoluta. Somos a cria daquela poeira que espalhou-se pelos quatro cantos, expandindo-se, expandindo-se até criar o que chamamos de "vida" e que, nem de longe, é o mais fantástico acontecimento deste universo.

A vida não é nada mais que um processo químico, reações e mais reações à própria história da matéria. Uma reação tão sem importância que dura menos de um século, segundo nossa contagem.

Não temos a profundidade existencial de uma supernova, o ocaso de uma estrela, que, gigante, não suportando o próprio peso, despedaça-se em uma explosão de energia e matéria, levando consigo a galáxia à sua volta. A destruição de planetas, asteroides e (porque não?) vida é algo  muito mais fantástico do que a vida em si.

No entanto, de nada adianta um espetáculo como a morte de uma estrela sem que hajam olhos que possam aprecia-lo, e é aí que a vida faz diferença: dando sentido aos espetáculos do universo que, por mais  belos que sejam, tornam-se, após acontecerem, na mesma matéria da qual é feita a vida: poeira de estrelas.

É disso que se constitui a beleza da vida. De enxergar o espetáculo que acontece à nossa volta. Seremos transformados em poeira novamente, do pó ao pó, mas  levaremos conosco aquilo que vimos e que nos maravilhou.

A vida não tem nada de especial per se. Ela se faz especial quando nos tornamos interlocutores da existência alheia, e não alheios à existência do universo que nos cerca.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Tschick - Uma inocência nova para perder

Os jovens são eternos. Nada os amedronta, e tudo amedronta ao mesmo tempo. Sua inexperiência gera a inconsequência que os faz tomarem decisões precipitadas e fazerem besteiras. Desejar ir à Valáquia em um jipe Niva quase destruído, por exemplo.

Esta é a história de "Tschick" (Ed. Tordesilhas - 2011), de Wolfgang Herndorff. Ele fala sobre o nerd Maik Klingenberg e seu amigo russo Andrei Tschtschatschow, mais conhecido como Tschick e de sua viagem atravessando o sul da Alemanha a bordo do Niva citado aí em cima em busca da Valáquia, terra do Conde Drácula, para quem não se lembra.

A viagem é marcada por toda sorte de eventos loucos, que vão de um encontro com uma família de lunáticos até um tiroteio em uma cidade abandonada. Tudo acontece em um tempo muito rápido, muito acelerado, no intervalo entre as batidas de uma música de Beyoncé.

É da falta de pretensão que surge o melhor do livro. Nem Maik nem Tschick fingem ter conhecimentos que não têm. o livro é contado em primeira pessoa, por Maik, e há coisas que ele não entende, ainda que nós, leitores, entendamos. E este é o melhor na forma de escrever de Herndorff. Ele consegue fazer com que seu narrador realmente não seja onisciente, mas que seu leitor consiga receber toda informação necessária para construir a narrativa em sua mente.

E o conflito em Tschick não se dá no universo dos jovens. Ao contrário. É em um Niva velho, um carro destruído, em busca de uma terra evocada em contos seculares que dois jovens de 14 anos atravessam estradas de terra de uma Alemanha rural e arcaica, ao som de Richard Clayderman. Tudo na viagem deles é muito velho, e, ao mesmo tempo, muito novo. Este conflito é reflexo do mais profundo do livro, que está presente na música de Belchior "Como nossos pais". Nós não mudamos o mundo. E estes jovens também não o mudarão. Eles o explorarão, mas o deixarão como está. É este velho e vasto mundo que os transformará e fará com que se tornem outros, assim como aconteceu com todas as outras gerações (guardadas as devidas excessões e proporções).

Tschick é uma leitura rápida. De uma sentada, mas intensa em seu tempo, e interessante para tentarmos entender não apenas a geração de 14, 15 anos que temos pela frente, mas para entender como nós, adultos, de nossos 30 a 50 anos, enxergamos esta juventude, e como nos identificamos com seus anseios que não são nada mais que os nossos, de anos atrás, que fomos deixando. Eu queria ser astrônomo, Tschick e Maik queriam chegar à Valáquia. O que nós queremos, afinal?

Por fim, o livro evoca conceitos universais presentes em qualquer road book desde "On The Road", de Kerouac. A busca da liberdade, a luta pela identidade, o rompimento com a infância em face da vida adulta, a batalha contra a geração anterior. Valores que qualquer geração sempre vai carregar. Desta universalidade  Tschick se aproveita muito bem, alcançando públicos distintos. Pode-se dizer que é um livro sobre adolescentes para adultos. Sem a pretensão de ser a voz de uma geração, ele acaba conseguindo ser, em parte, a voz de todas.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Ópera Kitsch no horário nobre


Por meio da reflexão chegamos a conclusões sobre nós mesmos. Passamos a entender nossos erros e nossos acertos. Entendemos nossa história. A reflexão sobre os papéis que ocupamos ao longo de nossas vidas é fundamental para que alcancemos o estado de graça necessário para o crescimento pessoal.

Isso não acontece apenas com pessoas. As instituições também precisam passar pelo processo de reflexão e reinvenção de si mesmas. O dinamismo das transformações do século XXI força-as ainda mais do que as pessoas, pois, usadas como exemplos hoje, podem cair em desuso amanhã. As instituições sofrem mais que as pessoas com os tempos em que vivemos.

Uma das instituições que mais sofreu com o novo século foi a novela. Outrora, o grande trunfo da TV brasileira, que movia as massas para a frente dos aparelhos todas as noites para acompanhar a vida de heróis e vilões, para desejar a riqueza de uns e se consternar com a pobreza dos outros, passou por maus bocados neste início de novo século. Encontrar uma voz para ser ecoada no meio da cacofonia comunicacional dos dias de hoje não foi fácil e aquela que era a vedete da TV brasileira teve que se contentar com um lugar sorrateiro no coração das suas mais fiéis telespectadoras: As donas de casa.

Porém, como disse no início deste texto, as instituições precisam refletir sobre qual seu papel no seio da sociedade em que estão representadas. Nos tempos de outrora, heroínas puras como a Escrava Isaura faziam sentido. No entanto, hoje, a pureza e a castidade não são mais requisitos tão valorizados. A independência da mulher chegou, e com ela, diversos novos valores e diversas interpretações de valores antigos que deixam de fazer sentido em uma nova sociedade.

Claro que a dona de casa ainda se alimenta daquele sonho lindo de ver a heroína castiça casando de vestido branco, véu e grinalda na igreja, com Mário Lago como padre (nos anos 80 e 90 só ele fazia padres na TV, era coisa de louco!) celebrante. Porém, as donas de casa não mandam mais no controle remoto. Suas filhas e, pasmem, seus filhos, tomaram as rédeas do mundo televisivo, e entre uma série americana e um documentário sobre o comportamento dos pescadores de focas do Alasca, eles podem querer ver algo que represente um pouco de sua realidade.

É aí que entra a nova novela brasileira.

E seu maior exemplo é a atual trama das 21h: Avenida Brasil, com seus personagens tirados do cotidiano brasileiro.

João Emanuel Carneiro com as estrelas de sua trama: O segredo é representar sentimentos reais para pessoas reais


O autor, João Emanuel Carneiro, é o criador da maior vilã de novelas do século XXI: Flora, de A Favorita, primeira experiência de exploração da vilania como expurgo para os sentimentos contidos no coração dos telespectadores. Na trama atual, ele apresenta a nova classe "C", e seus desafios. Além de criar uma vilã à altura de Flora: Carminha.

Na trama atual, acompanhamos Nina em uma luta por vingança. Carneiro explora sentimentos contidos no coração de cada um de nós, mas que temos medo de expressar. Raiva, dor, angústia, tristeza, vingança. Em explorar estes sentimentos, Carneiro tem o grande trunfo do novo século: a busca pelo realismo.

Somos humanos, dotados de emoções e sentimentos contraditórios. Tomamos decisões de mudança para, em seguida, continuar cometendo os mesmos erros. Falamos coisas para, no mesmo segundo, nos arrependermos. Pensamos coisas sujas, desejamos o mal, ansiamos pela derrota alheia como forma de purgar as nossas próprias. Somos vingativos.

Por outro lado, torcemos pelo outro. Queremos ve-lo tendo sucesso e alegria. Nos dedicamos, buscamos ser melhores, caímos e nos levantamos, enxergamos nossos erros e buscamos muda-los. Insistimos, amamos, nos ferimos, mas amamos de novo mesmo assim, para nos ferirmos mais uma vez. Desejamos, lutamos para conseguir, somos cheios de esperança.

João Emanuel Carneiro sabe explorar todas estas facetas em seus personagens. Como Manoel Carlos o faz tão bem com as classes mais altas, Carneiro o faz com as classes baixas. Ele mostra, em sua novela, ambientes em que podemos nos inserir. Nos apresenta personagens que já conhecemos. Olhamos para sua novela para nos vermos refletidos nos sonhos de um jovem jogador de futebol que quer crescer, ou vemos nossa vizinha representada pela periguete que quer encontrar a estabilidade. Queremos mais de suas novelas porque nos vemos nelas.

E tudo isso com um agravante: A novela assumindo-se como ela é: Kitsch, brega, cafona. Ironicamente, de dentro desta cafonice surge nossa humanidade brasileira. Das correntes de prata, dos cortes de cabelo de pagodeiro, das chapinhas e dos cordões de bijuteria, vemo-nos representados às 21h quando surge Tufão e sua turma e os sonhos que aspiramos para nós.

A Ópera de nossas vidas se representa na novela de João Emanuel Carneiro. Kitsch, sem perder o orgulho próprio.

Talento

Li uma crítica ontem sobre os textos de um escritor argentino. Gosto dos argentinos. São excelentes contistas. Desde Borges esta escola se dissemina entre nossos Hermanos.


No meio da crítica, uma frase interessante: "Com o livro nas mãos, eu fiz o que os escritores fazem quando se lembram de seus livros favoritos: olhei para o chão, senti uma dor terrível no peito que descia ao estômago e comecei a me deprimir e a me entregar ao abatimento porque o maldito Fogwill escreveu esses contos e não eu. Porca miséria."

Imagino que os arquitetos, os pintores, os atores, os autores de novelas, os compositores, todos os que lidam com a arte tenham este mesmo sentimento de inveja diante de uma obra prima. Aquilo que nos diminui, mas nos fortalece. Aquilo que confirma o talento do artista e conforma a falta de talento do arteiro.

O ofício de escritor é baseado no exercício prático de contar histórias. Como contadores de histórias, nossa meta é prender a atenção daquele que nos lê. Temos a pretensão de, assim, sermos o centro das atenções de um mundo que já não dá atenção a ninguém por mais de quinze segundos. Andy Warhol estava mais certo do que imaginava...

Escritores são anacrônicos. Somos mais que frases soltas no Facebook e muito mais que cento e quarenta toques no Twitter. No entanto, a simplificação de nossa excelência por meio da seleção de trechos curtos que podem caber no espaço de um suspiro e ser lidos no tempo de uma risada acaba por macular aquilo que temos de mais precioso.

Nosso talento.

Testemunhar a perfeição nos faz querer alcança-la por nós mesmos. Ler Borges, Stendhal, até o chato Hemingway, Proust, Lispector ou Melville, como estou fazendo, é nos diminuir e, ao mesmo tempo, nos fazer crescer. Vendo sua perfeição, elegância e eloquência, podemos nos inspirar.

A reprodução parcial destes textos, recortados e picotados para caberem no compartilhamento do Facebook não é aprazível para a própria arte. Alguns, que pensam que divulgam o trabalho do escritor fazendo isso, enganam-se. Não divulgam o trabalho do escritor. Ao contrário, deturpam-no.

O talento não pode ser concentrado em pílulas, mas consumido em largas doses. Seja em curtos contos, seja em longos romances.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Eu tenho um sonho

Hoje é aniversário da morte do reverendo Martin Luther King. Ele foi assassinado em 1968, um ano bastante agitado e que, segundo Zuenir Ventura, ainda não terminou.


Naqueles tempos de luta por direitos humanos e liberdades (que hoje gozamos e cujo valor não conhecemos), o reverendo King foi um dos nomes que mais se sobressaiu. Sua morte é um marco na luta pelos direitos de igualdade dos negros e de qualquer grupo social.


Lutar por direitos, hoje, é um expediente mal compreendido. Tanto por quem executa quanto por quem critica. As lutas sociais são causas nobres, mas, quando desvirtuadas de seu real significado, perdem seu valor e tornam-se motivo para piadas e chacotas.


Muitos lutam para que o sonho do reverendo King se torne realidade. Muitos participam nas linhas de frente das lutas sociais. Voluntários, enfermeiros, agentes de direitos humanos, blogueiros. Todos querem o direito de ser iguais, e, no entanto, ter suas diferenças respeitadas.


Quando eles respeitam o direito à livre expressão, eles têm o meu respeito. Em caso contrário, não. Não tenho como apoiar a luta de quem quer ter direitos iguais mas quer tolher o direito do outro de se expressar.


Estes são os hipócritas, que lutam por direitos para si, a preço da liberdade de expressão e de ação alheia. Creio que o reverendo King não ia gostar deste tipo de luta vazia.


Abaixo, a transcrição de seu mais conhecido discurso, proferido em 28 de agosto de 1963, na frente do Capitólio, em Washington. Em destaque, a frase que ecoa na mente de dez entre dez pessoas que lutam pelo direito de ter uma vida digna e justa, sem que isso custe a liberdade do outro.





"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.


Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros.

Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.

Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.

Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.

De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".

Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.

Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.

Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.

Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre.

Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só.

E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"

Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.

Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero.

Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.

Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.

Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.

Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre.


Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.

Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.

"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.

Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,

De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"

E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.

E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.

Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.

Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.

Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.

Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.

Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.

Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.

Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.

Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.

E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:

"Livre afinal, livre afinal.

Agradeço ao Deus Todo-Poderoso, nós somos livres afinal."

segunda-feira, 26 de março de 2012

Muito além do Professor Raimundo

Aos que estão acostumados a ver Chico Anysio alinhado a um tipo de humor que hoje é considerado pernóstico pela "elite pseudointelectualizada", o dos tipos, é bom que saibam que ele é muito mais do que isso.

Aliás, os mais de duzentos personagens criados pelo humorista cearense são apenas a ponta do iceberg da criatividade de um artista multifacetado. Alguém que não foi apenas feito para a TV, ou para o rádio, como inicialmente.

Chico era um escritor de contos no mínimo fantástico.

E eu leio Chico há um tempo considerável para saber do que estou falando.

Ele não era um escritor de humor. Chico não focava nesta direção. Ao contrário, como autor de contos ele queria nos fazer pensar na realidade do Rio de Janeiro, e, por consequência, do Brasil como um todo nos anos 60 e 70. Seus contos de "A Curva do Calombo", por exemplo, livro de 1974, são um achado neste sentido. 

Prostitutas, playboys, moças direitas e homossexuais enrustidos criam vida como se na mais rica história de Nelson Rodrigues, mas sem o moralismo do cronista d'A Vida Como Ela É.

Chico se deixa conduzir por dentro da hipocrisia dos ricos e da transparência dos pobres apresentando uma melancolia latente quando fala destes. Em outro de seus livros, "Feijoada no Copa", por exemplo, o conto que dá título à obra fala sobre isso. Dois ricaços enfadados da vida almoçam no Copacabana Palace. Reclamam da vida. Para eles não está fácil, entre seus talheres de prata e seus copos de cristal. No final, um deles joga o toco do cigarro Benson e Hedges na calçada. Um mendigo, molambo e maltrapilho pega o toco e sorri. "Que vida boa", agradece.


Chico faz o que faz sem julgar o rico ou o pobre. Sua escrita não é distante ou ausente, as histórias soam como que contadas na mesa do bar, reservando sempre uma surpreendente reviravolta final, como no conto "Tio Rogério", em que o pai sai de casa, deixando filho e esposa para trás, para começar a nova vida e, a partir deste momento, entra na vida do menino o "Tio Rogério" do título. O texto nos conduz a pensar uma coisa quando, na verdade, é outra que está acontecendo.
Com estas surpresas Chico nos desafia a repensar o cotidiano e o que as pessoas são capazes de fazer para tentar viver e ser felizes. Mais do que colocar uma maquiagem e simular uma voz, Chico conta histórias. Se são mentiras, Terta, eu não sei, mas que colocam para pensar, ah, isso colocam.

Em tempo: As ilustrações das capas dos livros de Chico que ilustram esta matéria são de Ziraldo que, muito além, do Menino Maluquinho, é criador de imagens geometricamente fortes e extremamente marcantes (além de ser um dos caras mais ciumentos que existem no mundo, segundo Zuenir Ventura).

quinta-feira, 1 de março de 2012

Someone like you? A lot, darling...

Adele e os seis filhotes, alimentados a muita dor de cotovelo
Meus parabéns à gordinha britânica Adele que faturou o Grammy deste ano e seis categorias. O prêmio é dado aos melhores artistas do ano, e quanto a isso não existe questionamento: Ela foi definitivamente a melhor do ano.

No entanto, a Adelefever que tem tomado os corações e mentes da juventude transviada que estava em busca de uma diva não me pega.

As letras que falam de amores perdidos e da tentativa de levantar-se e dar a volta por cima são um velho caminho trilhado por tantos artistas antes dela... Um velho caminho, sim, mas bem trilhado e agradável. Todos os grandes compositores já falaram da boa e velha dor de cotovelo. Ela nos faz crescer enquanto artistas e seres humanos. A dor, em geral, tem esta característica edificante.

Mas acredite, someone like her, tem diversas. Só de cabeça eu já penso em pelo menos três cantoras/compositoras/musicistas que estão no mesmo nível e até melhores que a jovem inglesa.

Posso começar com Norah Jones, que eu seu último trabalho, "Chasing Pirates", consegue transmitir uma emoção profunda e uma unidade criativa bastante edificante. Ando por fora do que Alicia Keys anda fazendo, mas ela é outro nome que posso dizer que sempre chamou a atenção, até porquê junta à aura standard um quê de R&B que é gostoso de ouvir e dançar. Sem contar Diane Birch, cujo timbre rouco e agudo e cujas letras poéticas e líricas fazem de "Bible Belt" um dos melhores discos da segunda década do século XXI.

Isso só para ficar nas cantoras/compositoras/musicistas que tocam piano e cantam com a rouquidão de uma alma quebrantada...

O problema não é a qualidade de Adele. Ela é ótima cantora, música com verve e paixão e compositora de dor de corno como poucas. O problema é que ela só consegue se destacar porque a música hoje está passando por um péssimo momento, quando falta qualidade, diversidade e identidade aos artistas.

Todos querem ser iguais a alguém que veio antes. Quantas Amys não estão surgindo aos quatro cantos? Quantos cantores de black music querem ser o novo Akon, ou coisa parecida? Se bem que Akon já deve ser o novo alguma outra coisa, que não sei...

A mesmice parou na música e ali ficou. Adele veio dar uma chacoalhadinha (de leve) nesta mesmice. No entanto, o risco de entornar o caldo é grande, já que uma das coisas que vai acontecer agora é o surgimento de várias Adelezinhas. E não é culpa dela, é um fato que as gravadoras vão querer fazer surgir novas cantoras com o mesmo perfil.

Será que as gravadoras terão coragem de lançar algo novo no mercado? Algo diferente? Difícil... Com as mudanças do mercado da música é mais fácil investir no igual, que você sabe que vai conseguir vender.

Mas ainda tem muita coisa boa surgindo no mundo alternativo. Basta uma vasculhada na Internet para você encontrar boas bandas. Até de muita coisa de dor de cotovelo, o assunto mais comum da música moderna. Vale a pena olhar em volta e sair da mesmice. Você vai encontrar alguém como ela, acredite. E até melhor, viu?

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012



Pichemos em nossos corações.

A verdade pichada nas ruas de São Paulo, um grito preso na garganta, solto com toda a agressividade. O que é importante para o homem, o que é importante para viver?

Tudo o que precisamos é do amor, pichado em nossos corações, enchendo-nos da coragem para ir além do comum. O amor é importante, porra, protesta a cidade contra nós, esquecidos da mensagem, esquecidos do verdadeiro significado daquelas palavras.

O amor, tão esquecido durante tanto tempo, relegado a um lugar sem destaque em nossas prioridades, ainda nos grita por atenção. O amor é importante, porra! A cidade grita, e nossos corações ecoam seu suplício.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Fôlego

Amar requer fôlego, e isso as pessoas não têm.

Não têm fôlego para suportar atravessar grandes adversidades em nome de um amor que considera o outro não a extensão de si mesmo, mas o outro, sim, o outro em si mesmo, uma pessoa diferente, independente.

A falta de ar se deve à superficialidade com que as pessoas tocam suas relações. Como se a vida fosse um rio e todos ficassem satisfeitos em boiar na superfície.

A vida está dentro do rio, mas é desconfortável e incômodo tentar encontrar o fundo. exige fôlego, exige olhar prá dentro, abrir os olhos quando a água é escura e descobrir que não dá pra saber o que está a nossa volta.

Amar exige fôlego para suportar a profundidade do rio do outro. Por mais que nossas cabeças estejam boiando, uma grande parte de nós ainda está dentro da água, oculta, esperando para ser descoberta. Esta parte de nós só pode ser explorada no mergulhar, e não na vista de cima. De cima da água tudo parece bonito, organizado e ordeiro.

É lá em baixo que o amor se prova. É na falta de ar, na sujeira do rio, na água barrenta e na dificuldade de voltar. É na possibilidade da morte que se prova a vida do amor.

Mas não podemos descobrir isso na superfície, onde o céu é azul e a água calma.

O problema é que quando a pedra bater nas costas, os despreparados vão ficar sem fôlego. Estes, que reclamam que amar é difícil, que viver é foda, que é mais fácil ficar sozinho, que o amor sempre machuca...

Sim, sempre machuca, mas é isso que acontece quando você desce um rio: as pedras, os gravetos presos, a escuridão da água, tudo o que está no fundo pode machucar, e a gente não sabe quando este ferimento virá.

Amar não é fácil. Se você acha que vai se ferir sempre, está certo. O que você precisa é explorar o fundo do rio da sua vida para saber o que tem lá que pode te machucar, e se proteger contra aquilo. Mesmo assim, a vida é um rio, e como todo rio, pode trazer novas pedras e novos gravetos do alto da colina.

Então, ao invés de gastar seu fôlego com futilidades e superficialidades falando do amor, vá viver o amor como ele deve ser, ferindo, duro, difícil. Mergulhe e fique sem fôlego. Deixe-se ferir e fira, e pare de reclamar das nuvens neste seu céu azul sem graça!

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Começo ruim


Terminei de ler "O sol também se levanta", representação de Hemmingway sobre a "Geração Perdida", de homens e mulheres que viviam o pós 1a guerra. O autor podia ter sido mais feliz. Apesar da sutileza do texto e da riqueza dos personagens, todos bastante complexos, o livro não chega a um ápice. Ao contrário, ele é feito de anticlímax após anticlímax.

Hemmingway consegue passar a emoção (ou a falta dela) presente na geração que se seguiu à 1a guerra. Personagens cuja existência não tem qualquer significado perambulam semivivos por uma Paris que é festa sobre festa e depois por uma Pambplona que é a própria fiesta o tempo todo.

De festa em festa vemos a existência miserável dos meio ricos da Europa dos anos 20, suas bebedeiras homéricas e a falta de significado de suas existências. Se eles não tinham qualquer significado, porquê, afinal, contar suas histórias?

Foi um péssimo início de relacionamento, Hemmingway... espero que os próximos sejam melhores...

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A eternidade do amor

Esta história do "Ou se ama para sempre ou nunca se amou" é besteira. Amor acaba, como qualquer outro sentimento. Crescemos, mudamos, evoluímos. Pensar que o amor é eterno por ser transforma em estático aquilo que o ser humano tem de mais dinâmico que é sua capacidade de se relacionar com o outro.

Amamos mais de uma vez na vida. E amamos de verdade. Aquele amor prá doer, prá deixar feliz. Podemos amar, também, uma vez só na vida, claro, e estes casos são muito comuns, e lindos exemplos de resiliência de um sentimento. Amor pode ser sequóia que alcança 1000 anos e pode ser laranjeira, que dura dez. Ou pode durar ainda menos, nunca se sabe.

Dizer que só se ama uma vez na vida é desvalorizar todos os outros relacionamentos que se viveu. Amamos errado, é da nossa natureza. Não sabemos fazer isso direito. Deus deixou umas instruções, e tal, mas cada um de nós é de um jeito, então, seguir todos a mesma cartilha é certeza de que perderemos nossas personalidades em detrimento de um modelo estático. Deus não quer isso. Quer que amemos errado, sim, para aprendermos o nosso jeito certo de amar.

Quem quiser amar certo vai se machucar ao longo da vida. Se fechar para o resto da humanidade dizendo que não poderá amar mais é perder tempo e maravilhosas experiências de vida, de derrotas, vitórias e amor. Muito amor.