quarta-feira, 2 de julho de 2014

A hipocrisia nos lábios e nas mentes

Bitoca!
Não vi o beijo entre as duas moças da novela das nove na Globo. Acabou que eu estava dando bitocas em outra coisinha linda, minha sobrinha-afilhada, recém nascida, que fico pajeando feito tio-padrinho babão.

Vi a foto das duas, Giovanna Antonelli e Tainá Müller dando o selinho que selou (!) o pedido de casamento que marcou o capítulo daquele dia e ouvi o silêncio. Nas redes sociais, nada de crentes excomungando a globo, nem o movimento gay soltando fogos.

Lembro de outro beijo (este eu vi), dado no último capítulo da outra novela. Dois homens, Matheus Solano e o outro que eu não lembro. Lembro do beijo que selou o relacionamento.

E lembro do calor das caldeiras do inferno, que se abria debaixo dos pés dos dois pecadores malditos para os queimar por toda a eternidade por estarem demonstrando seu amor em público. E lembro do calor dos fogos soltados pelo movimento gay pelo mesmo motivo.

Dois pesos. Duas medidas.

Meus amigos gays e minhas amigas gays sabem da diferença que existe em relação a suas demonstrações de amor e afeto. enquanto as pessoas torcem para ver um beijo delas, vira-se a cara para um beijo deles. Como se um caso fosse natural e tolerável e o outro horrendo e deplorável.

Este pensamento se refletiu nas reações das pessoas aos dois beijos. Eu nem cito o beijo do SBT que é mais ou menos como gol em amistoso do XV de Piracicaba contra o Jabaquara. Não tem valor nenhum.

Olhando para o povo, não o vejo "se acostumando", mas mantendo em voga sua habitual hipocrisia. O Brasil é aquele tiozão que não deixa a filha sair de minissaia mas gruda os olhos na TV durante os desfiles de carnaval, gosta de espiar a vizinha pela janela e acha que a mulher tem que aceitar suas escapadinhas para visitar as "filiais".

Uma tolerância de conveniência, afinal, plastica e culturalmente falando, é muito mais bonito ver duas mulheres se beijando do que dois homens.

O engano é achar que o silêncio é anuente à causa gay. Não se enganem! As pessoas não estão mais tolerantes. Só estão mantendo o status quo, persistindo no mesmo velho pensamento de sempre, alimentando suas fantasias sexuais ultraconservadoras que diferem o "menàge bom" do "menàge ruim" enquanto parecem concordar com a liberdade de cada um de amar aquilo que acha certo.

Aos amigos gays, os incentivo para que continuem demonstrando publicamente (aqueles que querem, lógico) seu amor e seu afeto, sem vergonha e sem medo de nós, héteros. Às amigas, encorajo-as a fazer o mesmo. Não apenas para romper as ligas que nos prendem a nós, heteros, a nossa forma de pensar o amor, mas, também, e principalmente, para poderem amar de forma livre e nos motivar a fazer o mesmo.

Mais amor! Menos julgamento e hipocrisia! Para que os beijos, um dia, sejam mais do que símbolos de libertação, que consigam ser demonstração de carinho, afeto, desejo e até de amor.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Guess Who



A música de B.B. King que mais me marca é uma balada blues açucarada, bobinha que só.

Mas foi a música que me acompanhou durante muito tempo, me ajudando a criar, escrever. Eu não tinha dinheiro para comprar CDs, e em Itariri e Peruíbe não chegava muita coisa. Então, quando uma editora lançou uma coleção de jazz e blues eu peguei logo o primeiro encarte.

Lá estava um disco do Concerto Midem em que Pat Matheny, BB King e Dave Brubeck transformavam minhas dores em canção (a coleção era a Jazz Masters, obrigado, Google!). Não tinha muito mais coisa que chegava às minhas mãos. O que aparecia na TV, especialmente na TV Cultura, eu transformava em fitas K7 no meu aparelho de som. O Concerto Midem foi uma das coisas que compramos para ter mesmo.

O disco, de um virtuosismo inacreditável, tinha um momento de grande simplicidade. Guess Who. Uma declaração de amor de um homem que esperará a eternidade amando uma mulher, esperando por ela. Ele pede para que ela abra o coração.

Na época (e lá se vão quase vinte anos), eu não tinha internet, tinha um inglês pobre e não conseguia traduzir o sotaque do Rei. Não entendia a letra, mas entendia o sentimento e visualizava um casal apaixonado dançando a última música antes que o rapaz fosse enviado para a guerra, ou algo assim. Um clichê. Exatamente como a música.

Ela me acompanhou nas madrugadas em que passei sentado na mesa de vidro de casa, olhando para o papel branco e buscando dentro de mim o que queria colocar para fora. Guess Who me traz isso. A memória dos contos e dos poemas da minha adolescência. As histórias melancólicas dos amores perdidos e não vividos.

Li a letra hoje e achei bonita. Simples, clichê e bonita. Mas nada é comum quando se trata do Rei. Mesmo a melancolia ganha novos tons. Sem conhecer o significado da música dei a ela uma história. A tradução da letra não a mudará. Aquilo que guardo em mim, da época de primeiras palavras não permito que se esvaia jamais.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O escitor e a pipa

Com o tempo, as fantasias que nos cercam na infância vão sendo deixadas de lado. Vamos nos tornando mais austeros e maduros. Esta maturidade nos leva à faculdade, ao primeiro emprego, à casa própria, ao carro, à família.

No entanto, dentro do coração de cada um de nós, ainda existe uma pipa com rabiola enrolada que só está esperando a primeira fieira de fantasia para poder adejar contra o céu azul.

Escritores mantém essa pipa voando alto, sempre. São adultos com alma de criança. Precisam da fantasia e da imaginação pulsando forte para poderem viver. Diferente da maioria das pessoas, buscam sonhos, e não realizações.

Como a criança que transforma um galho em espada e sai pelo mundo para conquistar reinos e castelos, o escritor cria, com pena, mundos para conquistar, para se realizar.


Escritores são crianças em corpos de adultos que, em detrimento de uma vida comum, soltam pipa de vez em quando usando uma folha de papel em branco como céu para ser feliz.