terça-feira, 22 de setembro de 2015

O dia em que eu teria sido demitido por Chatô

Quando Samuel Weiner foi cobrir a Segunda Guerra Mundial para os Diários Associados, Assis Chateaubriand lhe deu um aviso.

"Você vá para a guerra mas não morra. Você é pago para noticiar, não para ser notícia".

Todos os dias o aviso de Chateaubriand tem que ecoar na minha mente. Na verdade, todo jornalista que se julga responsável sabe que ele mesmo não é a notícia, mas um narrador, o contador de histórias de outros personagens. Uma voz que diz, de fora, o que está acontecendo.

No entanto, há dias em que é impossível ficar impassível diante do fato que ocorre diante dos seus olhos e o velho dilema do filmar ou salvar a vítima do afogamento volta a martelar na sua cabeça.

Hoje foi um dia desses.

Fomos enviados, eu e o cinegrafista Asafe Pacheco, para uma ocorrência. Um tiroteio entre o dono de um posto de gasolina no bairro da Torre e um assaltante que tentou roubar o posto. Eles trocaram balas na porta da conveniência do posto. Vidros quebrados, tiros nas paredes, sangue espalhado.

O dono do posto foi baleado na cabeça. Agonizava, respirando pesado, no interior escuro do posto enquanto o assaltante, olhos arregalados de quem vê "a luz" jazia quase inerte do lado de fora. Seu rosto focava o chão. Boca aberta, babava e vivia, ainda, em detrimento do desejo de todos à sua volta.

Chegamos para registrar a ocorrência antes da polícia estar no local. Os moradores estavam em volta do corpo do assaltante, que fora baleado no peito, no abdomen, nas costas e nas nádegas. Ele acertou um tiro. Só um. Na cabeça do empresário.

Enquanto registrávamos o fato, o assaltante tentou se mover. Motivado pela dor que o cegava, tentou girar o corpo para cima. Estava sobre cacos de vidro da porta da conveniência. Tocou no chão para girar e, sem querer, tocou em um caco grande de vidro.

Foi o bastante. Três moradores do local foram sobre ele. Um pisou em sua mão para que ele "soltasse" o caco de vidro, um segundo motivava a ação e o terceiro, o que estava mais perto, pisou o peito do rapaz.

Bem no local onde tinha entrado a bala.

Eu entendo a indignação da população com os criminosos. Entendo o que motiva as pessoas a sentirem ódio daqueles que tiram seu sustento. As conversas entre os moradores davam conta de que aquele não havia sido o primeiro assalto dele na região do bairro da Torre. Outro assalto, no último domingo (19) também teria ocorrido com o assaltante apresentando as mesmas características peculiares do rapaz (ele estava vestido com um jaleco de um laboratório, uma touca cirúrgica e uma calça de trabalho. Parecia um funcionário de alguma clínica que estava indo lanchar na conveniência), o que aumenta ainda mais a indignação. Ele empunhava um revólver calibre 38 municiado. Ele atirou contra um empresário que, tudo o que fazia, era fazer negócios no seu posto, vendendo seu combustível honestamente, um pai de família que deixou filhos e netos, um "homem de bem".

Eu entendo a indignação, mas não se justifica o que aconteceu. Nas bocas da população o grito de "morre", "mata" e "deixa morrer" eram entoados como mantras, em uníssono. Ao ver o homem pisando a ferida aberta no peito do assaltante os populares não se indignaram, mas sentiram-se justiçados, como se aquele ato de violência pudesse por fim ao medo alimentado dia e noite nos corações da população.

Vivemos em um país que tem na violência uma ferida exposta no peito aberto da miséria. Uma violência que é fruto de vários fatores que não quero discutir aqui. Uma violência que me deixa indignado, seja ela perpetrada por um bandido ou por vários.

Pedi que o homem tirasse o pé do peito do rapaz. Ele estava pisando a ferida do homem. quando o assaltante tentou se mover novamente eu falei para ele não fazer isso.

"Amigo, não se mexe, fica quietinho esperando o Samu senão vai acabar sobrando para você".

Os três homens pularam para cima de mim. O discurso era um só.

"Amigo? Isso aqui não merece viver. Amigo é aquele ali dentro, pai de família, que está quase morrendo. Se você é amigo de bandido você é bandido também".

Um soco no meu peito, tapas no meu rosto e muita violência verbal. Foi o que enfrentei. Deixei que me batessem. Era a dor deles que estavam diluindo em mim, como haviam diluído no rapaz caído. Era a violência da sua moral seletiva que arbitrariamente eu deixei que eles soltassem. Não reagi, que não sou disso. Tentei acalma-los, mas foi em vão. Mandei que tirassem as mãos de mim, mas nada.

Balzac já dizia que os crimes coletivos não condenam ninguém. Ele dizia isso sobre o jornalismo, mas serve para a situação em questão. Em volta, o olhar da população era aprovando a violência da qual eu era a vítima naquele momento. Em momento algum desviei meu olhar dos olhos daqueles homens. Não os temia. Temia, sim, pela vida do assaltante, que, em detrimento de ter tirado a vida de um cidadão, merecia o mesmo atendimento e cuidado de saúde que o outro.

Merecia o mesmo direito de viver, ainda que tenha intentado contra a vida do outro.

É grande a indignação pela sensação de impunidade que existe no Brasil. Vemos a justiça morosa, a polícia corrupta, as leis burocráticas agindo contra a justiça e temos que nos calar. Somos engolidos pelo turbilhão. 80% dos homicídios cometidos no Brasil não tem solução. 90% dos que tem solução ocorrem por motivos torpes, besteiras. Uma dívida, uma traição, uma tentativa de assalto frustrada. Isso ferve o sangue e a vontade é aplicar a lei de Talião nas terras tupiniquins. Isso leva aos justiçamentos, isso leva assaltantes a serem amarrados em árvores e postes, mulheres serem linchadas por suspeitas (infundadas, vale lembrar) de envolvimento com magia negra e assassinato de crianças, estupradores terem o tratamento que tem nos presídios brasileiros.

A mesma impunidade que os indigna é a impunidade que os deixa aliviados. Os crimes coletivos, aqueles que estas pessoas cometem em grupos, não condenam a ninguém. A minha intervenção foi suficiente para apaziguar os ânimos daqueles moradores, ao menos até a chegada da polícia, que mandou todo seu operativo para o posto de gasolina. Mais de 20 policiais, doze viaturas paradas no posto onde havia apenas duas pessoas caídas, sendo um assaltante e um empresário do ramo de postos de gasolina, enquanto que, quase simultaneamente, no bairro do Cristo Redentor, na mesma João Pessoa, uma guarnição com apenas três homens investigava a tentativa de homicídio de um ajudante de pedreiro na esquina da Rua dos Milagres.

O assaltante foi socorrido para o Hospital de Emergência e Trauma de João Pessoa, o mesmo hospital para onde tinha ido, momentos antes, o empresário. No fim, em detrimento do que fazemos, somos todos iguais, movidos pelas mesmas indignações, pelas mesmas frustrações. Chateaubriand, hoje, teria me demitido.

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