sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A Arte da Brutalidade

Quando passamos por uma cirurgia em que recebemos anestesia, o acordar após o sono é doloroso e chocante. Muitas vezes como se a dor tivesse nascido naquele momento em todo seu esplendor maldito, deixando-nos rendidos a ela, entregues a sua vontade soberana, chocados, absortos por sua força e forma.

Com a violência, hoje, não é assim. Não nos chocamos, pois não há mais dor. Ou, ainda, há dor, mas estamos anestesiados, como que ainda sob o efeito do entorpecente que nos deram. Um entorpecente que nos fecha os olhos para a dor verdadeira que corre por nossa espinha.

É contra esta anestesia que o multi-artista paraibano Solha escreve em sua "História Universal da Angústia", livro que ainda não li, mas cujo capítulo "A Gigantesca Morgue" tive a oportunidade de ouvir graças a Eli-Eri Moura e à Orquestra de Câmara de João Pessoa, da Funjope, em sua dissonante "Cantata Bruta".
Sobre a obra de Solha não tenho muito o que dizer, já que, infelizmente, não conheço com a profundidade com que gostaria, mas sobre a Cantata Bruta, sobre esta tenho muito o que falar. Sobre o assunto de que trata, então, um de meus assuntos preferidos, esta anestesia que temos diante da violência que chegou à sua banalização.

A obra do maestro Eli-Eri Moura e de alguns outros compositores paraibanos é contra Samukas Duartes e contra Jás. É contra cada vizinho indiferente, cada corpo estendido no chão e coberto com um jornal, é contra cada abandono e contra cada ato de violência.

A obra fala de casos específicos de violência que falam conosco. Em nosso íntimo, sabemos que é graças à nossa indiferença que esta violência se dissemina. É graças a nossos braços cruzados que homens como os que mataram Ahmed e Fernanda continuam estendendo suas mãos para o grotesco.

Grotesco, aliás, é o que o maestro usa para alcançar todo o potencial desta obra. Grotesca, impressionista, contemporânea. Estas são as palavras que melhor definem a obra, que mescla a orquestra com um coral, sons eletrônicos, atores e iluminação.

Mas ainda é na música que está o mais forte. A violência plástica que ela desenvolve chega aos píncaros da crueldade de um filme como "A Centopéia Humana", ou "Martyrs", por exemplo. Não se trata do que se vê, mas de como se ouve, e Eli-Eri sabe captar a sonoridade dos instrumentos e das palavras para fazer com que elas ganhem a conotação angustiante que merecem..

A angústia que Solha deve ter escrito em sua História Universal. A angústia que cada um de nós, humanos, sente diante da violência e de como esta violência chegou até nós. A violência que cada um de nós, como a senhora que tira do ouvido o aparelho de surdez, prefere não ouvir. A violência que a anestesia do mundo nos faz fingir que não conhecemos.



Serviço: Cantata Bruta - Sábado, 29/10 e Domingo, 30/10, 20h, Cine-teatro Bangüê, Espaço Cultural, Tambauzinho, João Pessoa. Entrada Gratuita.


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