quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Dom Casmurro, ou "A omissão que é mentira

Não. Dom Casmurro não é um livro sobre o ciúme. Não é este o assunto que permeia o livro. Não é sua espinha dorsal. Também não é um livro sobre Capitu. Ela, a personagem feminina mais importante da literatura de língua portuguesa não é o mote principal da obra.

O livro é sobre justificar seus erros depois de se ter remorso por eles.

Sim. é isto que Bentinho tenta com seu livro: convencer a si mesmo de algo em que já não mais acredita. Algo que lhe corrói.

Sim, Dom Casmurro é sobre ele mesmo: o Dom Casmurro.

Atar as duas pontas da vida? Pois sim! bentinho quer tentar justificar pela apresentação de provas circunstanciais (é um advogado! Ele vive da defesa de teses) e pela não apresentação de outras provas.

Dom Casmurro é um livro tão importante pelo que se escreve nele quanto pelo que não se escreve. O que é oculto tem tanta importância quanto o que é revelado. Temos um lado da história, que se construiria de forma diferente diante dos outros pontos de vista.

A amargura de Bentinho se sente por toda a extensão do livro, fazendo da narração uma personagem à parte. Tão importante quanto o narrador são os sentimentos que o inundam por toda a extensão do livro. Bentinho se entrega em meias palavras, no imagina-lo escrevendo, quase vendo as lágrimas que lhe correm das vistas, as raivas que oculta, os momentos em que a pena sobe, preferindo uma palavra à outra, mas voltando à original para tentar iludir a si mesmo com uma proximidade de verdade.

Mas não estamos falando da verdade propriamente dita, e sim da sua verdade íntima e pessoal, a verdade em que Bentinho acredita.

Machado constrói um personagem profundo e complexo com este Casmurro que escreve, contando sua história. As nuances acontecem no texto tão mais fortes do que acontecem no fato narrado, dando peso ao que lhe interessa, tirando do que não lhe apraz (a notícia sobre Capitu, enfurnada entre duas frases pouco importantes, demonstrando falso desinteresse pela vida da antes amada, o não lembrar do discurso para o amigo Escobar, que era um mais lembrar que qualquer coisa), construindo um cenário que mostra Capitu como a grande culpada de traição que ele imaginava. Porém, pergunto-me: seria?

Não vemos o rosto de Ezequiel, possível filho da traição que trazia em si Escobar todo. Contamos apenas com a descrição que Bentinho, tomado pelos ciúmes lhe dá. Vemos os enigmáticos olhos de Capitu pela ótica, ora apaixonada, ora desaforada do Casmurro narrador. Conhecemos dos fatos as partes e nada mais que elas. E, diga-se, as partes que interessam a Bentinho que saibamos.

Eis o que a obra tem de mais rico. Machado faz com que a ótica do narrador seja de tal maneira solapada pelo próprio conteúdo que cai em descrença. Bentinho não se faz acreditar justamente pelo fato de que quer ser crido, inclusive por si mesmo, da mentira que a mente lhe pregou.

Ou será que não?

Trecho
 
"Olhos de Capitu"

"Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."

3 comentários:

  1. Só pensei em comentar que você colocou a melhor parte do livro neste post!

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  2. É minha parte preferida do livro também. Olhos de ressaca. E qual era o fluido estranho mesmo? Humor vítreo, né?

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  3. Este mesmo! O que temos dentro dos olhos ;)

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