quinta-feira, 26 de maio de 2011

De volta ao passado

Eu tinha uns cinco anos de idade quando ouvi, no clube que freqüentávamos em Campinas, a seguinte frase: “Você não lembra de nada de antes dos cinco anos de idade”. Não sei quem falou isso, mas foi em uma mesa, à volta de algumas garrafas vazias de cerveja, ou seja, em alguma academia filosófica padrão do Brasil do século XX.

Devo ter ficado me concentrando naquele momento, para que ele ficasse marcado em minha mente e eu pudesse contrariar a “sabedoria divina” que provinha da mesa do bar. Tentei lembrar várias coisas em meu passado, tão curto até então, e guardei-as em alguma gaveta em minha lembrança. Porém, o que mais me interessa, quando olho para trás e vejo aquele momento, é a minha atitude de inconformismo diante do inevitável. Não importa se era verdade ou não aquela informação, mas sim que, como criança, eu acreditava piamente em tudo que os adultos diziam. Então, para mim, não lembrar de meu passado era verdade. Aquilo ia acontecer comigo.

O determinismo daquela frase me chocou, mas não me dei por vencido. Creio que minha contínua ligação ao passado tem raízes neste momento. Sou alguém que não quer esquecer. Reservei uma grande área em meu cérebro com um álbum de fotografias e vídeos para onde posso correr para lembrar tudo. Busco em minha vivência anterior a contínua bagagem para a vivência posterior. Para viajar, precisamos saber com o que nos vestir para onde vamos, e nada melhor do que lembrar como nos vestimos da última vez que estivemos ali.
Tenho flashes dos meus primeiros anos. Muito esparsos, mas consegui romper a barreira imposta por aquela citação. Sem muita lógica, consegui formar um pequeno quebra-cabeças de reflexos que se estendem pelo período de aproximadamente dois anos antes do fatídico dia de meu quinto aniversário.

Lembro de duas coisas do meu primeiro colégio: “Balão Mágico”. Lembro dos brinquedos do play ground, lembro de estar com as monitoras no play-ground, em um brinquedo que parecia uma gaiola. Lembro de estar sentado em uma mesa, em uma festa junina, ao lado de uma menina de olhos verdes e da minha mãe falando que éramos namorados. Eu tinha quase cinco anos nesta época. Era meu último ano naquela escola.

Lembro do dia em que meus pais me contaram que eu ia ter um irmãozinho. Nós estávamos no carro (um Passat, não lembro qual, pois tivemos um azul, um cinza e um branco) e eles disseram que o Felipe estava vindo. Eu tinha quase quatro anos e estava de pé no espaço entre os dois bancos da frente, olhando para minha mãe, que sorria para mim.

Quando meu irmão chegou em casa, eu lembro de estar no quarto da minha mãe, com a minha avó, esperando. O carro parou de frente para o prédio onde morávamos. As grades do prédio eram de ferro, pintadas com tinta anti-ferrugem e o piso ainda era de concreto, com as marcas das vagas de estacionamento dos apartamentos pintadas em amarelo. Eu tinha quatro anos de idade.

Lembro da pintura azul em meu quarto, com as nuvens. Lembro do meu pai criando, com mãos de marceneiro, os móveis de nosso quarto. Lembro da escola “Meu Quintal”, comigo fantasiado de Gorpo, por que não queria ficar vestido de He-man. Lembro de ir ao Taquaral, um parque em Campinas, com mais umas seis pessoas dentro de um fusca branco. Lembro do cheiro de uma bola de borracha que compramos lá. Lembro de muito mais coisas, que não preciso dizer aqui. Tudo antes dos cinco anos.

Eu lutei contra uma determinação do tempo. Lutei contra o conhecimento humano de que não poderia me lembrar de nada antes dos meus cinco anos de idade e lembro. Lutei para não esquecer qual é o sabor da memória para mim. Lutei, por que tudo o que posso fazer contra o determinismo é lutar. Não quero ter uma vida vazia, sem lembranças.

Não vivi muito. Nem vivi intensamente. Sempre tive uma vida perene e normal. Normal demais, sem muito me aventurar. As perdas não foram tantas, e nem tão marcantes (excetuando-se meu avô e minha avó, não perdi entes queridos). As vitórias não foram tão grandiosas. Porém, as lembranças desta vida são minhas e não aceito que digam até onde posso lembrar delas.

Proposta do dia: lembre-se de algo de sua infância. Um cheiro, uma pessoa, uma textura.

Texto originalmente publicado em "Meu lar é onde estão meus sapatos" em 2009

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